Manuel Ramos (Nelo) em entrevista @nelokayaks #canoagem

Original em excelenciapt.com, Autor Miguel Rodrigues

Eu fui atleta. Nasci em Angola e vim para Portugal em finais de 1975. Mais tarde, em Vila do Conde, fui para uma escola de canoagem – na altura em que ninguém conhecia a canoagem – mas na verdade fiz um bocado de uma auto-aprendizagem. Como nem havia canoagem organizada cá em Portugal comecei a competir em Espanha em nelo9’76, até ser cá fundada a Federação Nacional de Canoagem e eu ser o primeiro campeão nacional (aí umas cinco vezes). Cheguei até a fazer um mundial e algumas provas internacionais de velocidade, que cá em Portugal não tínhamos.

A dada altura comecei a utilizar caiaques feitos por mim – comecei a trabalhar muito cedo: montei a empresa aí aos 17 ou 18 anos -, em poliéster e fibra de vidro. No início dos anos ’80 servi durante um tempo o crescimento da canoagem em Portugal já que pelo menos havia produção nacional a custos adequados ao bolso dos Portugueses.  A marca cresceu, mas como era uma modalidade curta na altura, sazonal e também porque o mercado nacional era um mercado exigente tentei fazer a minha aposta internacional. Passei por cima de Espanha para não estragar o mercado a um gestor com quem mantinha uma relação ou não baixar demasiado o preço, mas teria sido um mercado muito mais fácil já que a canoagem espanhola já tinha uma grande expressão, com provas com mais de cem anos, e havia proximidade.

A minha atitude foi aquela que acho se deve ter para se ser bom em tudo: dar passos grandes, necessariamente difíceis.  Fui para a Grã-Bretanha, onde comecei com um paleontólogo escocês que utilizava o caiaque para os seus trabalhos de investigação no Sena, Nilo, etc., e depois tentei conquistar o mercado de alta competição. Tive essa vontade: da mesma forma que competi, queria ser o melhor se estivesse nesta área. Para ser o melhor da minha zona não valeria a pena (risos). (…) Portugal é um país limitado, sem passado na canoagem, e era complicado para um gestor português impor-se num mercado em que outros países tinham expressão… mas foi essa dificuldade que me obrigou e à minha equipa a fazer um trabalho redobrado e de qualidade. Acabou por dar em chegarmos aos melhores do mundo. Foi difícil no início mas quando chegámos ao topo vínhamos com background, conhecimento, estrutura, know-how que os outros não tinham.

E como adquiriram esse conhecimento? Foi sempre por auto-aprendizagem?

Sim, sim. A grande vantagem da nossa marca é não andarmos atrás de ninguém. Naturalmente que no início tirámos ideias de outros, mas neste momento andamos à frente. Neste momento há 4, 5 fabricantes que fazem a diferença e depois há construtores que copiam os melhores barcos e os metem no mercado a um preço mais baixo.

Que foi o que vocês se recusaram a fazer.

Naturalmente que no início copiei.  Mesmo nos primeiros Jogos Olímpicos em que ganhámos medalhas, em Atlanta, os barcos não foram desenhados por mim. Eu tinha tentado uma primeira abordagem de dois modelos que correram no Campeonato do Mundo de Maratona de Juniores – e até ganharam medalhas – mas que nos foram desautorizados no Campeonato do Mundo de Seniores porque a federação internacional entendeu que a parte de cima do barco beneficiava do vento traseiro. Acabei por ter de ganhar um pouco de arcaboiço. A seguir, nos Jogos de Sidney, já são modelos desenhados por nós que acabam por obrigar a federação internacional a mudar as regras. Fizemos 5 medalhas com barcos legais que ofereciam bastantes benefícios e obrigam à alteração da regulamentação.

E nos Jogos seguintes tornam-se fornecedores oficiais.

Somos fornecedores oficiais 4 anos depois, em Atenas – foi uma guerra tremenda com os outros fornecedores e até com a federação (…). Antes já éramos líderes em velocidade e maratona, mas com o resultado de 2004 (fomos o fabricante que mais medalhas conseguiu nuns Jogos) e tornámo-nos nos mais importantes. Depois, em Pequim, voltamos a ser fornecedores oficiais e conquistamos um número absurdo de medalhas (20 em 86). Voltamos a sê-lo em Londres e até em slalom, algo em que ninguém acreditaria porque andávamos há pouco tempo nisso (…). E tem sido esse, mais ou menos, o nosso trajecto.

Quais são as características que tornam os vossos barcos tão apreciados?  

Neste momento ganhamos praticamente tudo em caiaque, e no resto andamos taco-a-taco com outro fornecedor. Houve até uma série de finais em Londres em que só competiram barcos nossos. (…) O que nos diferencia é o conhecimento, o know-how, o serviço… uma série de circunstâncias. Fomos os primeiros a produzir barcos para todas as categorias de atletas. A nossa primeira encomenda foi para a seleção japonesa porque ninguém produzia barcos para atletas de 50kg. Haviam barcos para homens com mais de 75kg e para mulheres com menos de 75kg. Agora fazemos barcos para atletas de 50kg a 110kg, obviamente adaptados às suas características. Também fazemos um trabalho único de telemetria e um ajuste dos barcos aos atletas, razão pela qual cá temos vários centros de treino. A ideia inicial nem era essa, mas as seleções acharam a qualidade dos nossos centros tão elevada que optaram por vir para cá treinar e não só fazer ajustes. Continuamos a acompanhar as equipas que treinam noutros centros, mas só aqui vendemos 22 000 noites, o que dá para adquirir conhecimento, para recolher imensos dados de telemetria em tempo real, para fazer ajustes, para ajudar os treinadores e os atletas… É um trabalho que desenvolvemos ao longo do ano nas fases de preparação e competições (…) e que funciona como uma bola de neve. Hoje temos informação de todos os atletas que por cá passaram nos últimos 10 anos – atletas de topo- e que nas diversas competições têm acompanhamento nosso (…). Garantimos que podem estar perfeitamente descansados porque não lhes vai faltar nada. Com tudo isto garantimos que a nossa diferença para os outros é muito grande.

Falemos da modalidade em Portugal. O nosso país tem uma grande disponibilidade de recursos naturais e a fama dos desportos náuticos está a aumentar, em parte devido ao vosso contributo. Nesse cenário, prevê uma ascensão ainda maior dos atletas portugueses nos quadros internacionais?

Sim, sem dúvida. Neste momento, é provável que o desporto que mais sucesso tem seja a canoagem: nos últimos Jogos Olímpicos ganhamos uma medalha, no Campeonato da Europa do último fim-de-semana estivemos em 9 finais e arrancámos duas medalhas (…). A maior comitiva portuguesa dos próximos Jogos será a da canoagem, com certeza absoluta.

Muito graças ao vosso contributo.

Uma coisa é certa: estamos na canoagem há muitos anos, a nível internacional. Sabemos muito bem a realidade da Austrália, Japão, Alemanha, etc. e sabemos qual é o denominador comum do sucesso, que passa por massificação e objectividade. Os dirigentes portugueses absorvem um pouco do nosso conhecimento – em vez de andarem a fazer experiências têm alguma “ajuda” nossa, naturalmente. E depois, claro, ter uma empresa de renome internacional ajuda os atletas a acreditar que é possível.

Para terminarmos: quais são os projectos futuros da Nelo?

O nosso grande objectivo, obviamente, é continuarmos os melhores. Temos o nosso main business, em que somos mesmo bons, e queremos manter-nos a um grande nível, sempre inovadores, de modo a que nenhuma marca se chegue a nós. Aqui temos sempre projectos, ainda agora concluímos um no Rio de Janeiro e temos outros, pensados e solidificados, que não nos interessa largar. Depois temos projcetos em outras áreas, muitos em lume brando por levarem tempo a cimentar e por podermos não ter ainda capacidade produtiva. Estamos envolvidos no softski, no slalom e noutros em que estamos a negociar. Além do empenho na massificação da canoagem, queremos adquirir outras marcas para acrescentar valor de mercado e podermos entrar como os melhores e não como um produto de segunda escolha. Queremos ser sempre os melhores. Estamos a criar estruturas compostas pelas pessoas ligadas ao desporto. Paralelamente à formação dos colaboradores podemos adquirir estruturas já existentes. Estamos a negociar. Projectos não nos faltam, mas só avançamos com garantias de que tudo vai funcionar.

fotos: DR